Maravilhoso Novo Mundo
Não é maravilhoso?
Não apenas algumas coisas, mas várias. Mas todas. Estamos presos numa roda que nos obriga a correr sempre na mesma direcção e sem conseguir olhar para trás, sem ter tempo para isso. Para pensar, para sentir. Apenas continuar a correr, com medo de que sejamos levados, atropelados pela roda ou por quem nos dizem estar atrás de nós. Com medo que nos caia o céu em cima não ousamos olhar para onde quer que seja a não ser para a frente. Mesmo assim quando arriscamos a olhar para trás, não vamos mais além do exercício de tortura, de auto-flagelação, de olhar para feridas passadas, de olhar para aquilo que nunca foi nosso como forma de castigo, inspirados por uma necessidade doentia que não deixa ir, que não deixa libertar cargas que levamos às costas demasiado tempo.
Faz parte do processo e é perfeito por isso. Faz parte do processo deixarmo-nos prender, para nos aprendermos a libertar e a cada grilhão que é quebrado, é mais um passo em direcção à liberdade, esse conceito tão simples aparentemente e vasto demais para ser compreendido por todos nós que continuamos presos e não nos apercebemos. Presos a coisas, presos a confortos, a comodidades, presos àquilo que não nos serve. A liberdade pode começar quando ousamos olhar para trás e ver, realmente ver aquilo que está na base do que somos. Olhar para trás e sentir, sentir toda a dor, toda a alegria, tudo aquilo que nos fez o que somos, que foi fundamental. As vezes que caímos na infância, as vezes que nos empurraram, a maldade e a crueldade da forma como nos trataram, mas também a forma fizemos aos outros, apenas porque não sabíamos mais que isso. A forma como fomos injustiçados pelos adultos, pelos nossos pais e a forma como lhes faltámos ao respeito, em como os idolatrávamos, os temíamos e como nos desiludimos ao verificar que não eram deuses que nos tinham trazido ao mundo e quem julgávamos perfeitos. A forma em que descobrimos que a vida era diferente daquilo que nos disseram, que não era perfeita, que eramos recriminados por procurarmos um mundo seguro, diferente deste, um mundo diferente deste por ser feito à nossa medida, à nossa imagem, onde tínhamos tudo que neste não tínhamos. Onde não nos faltava amor.
Olhar para trás, sem qualquer sentimento de auto-comiseração, sem alterar o que foi vivido de forma a que o presente seja mais confortável, sem desculpas, sem justificações para acções presentes. Olhar para trás e ver como tudo foi maravilhoso. Todos os abandonos, todos os encontros, todas as brincadeiras. Crescer, crescer dolorosamente. Encontrar o lugar no mundo, encontrar o grupo ideal, o lugar onde fossemos apreciados, onde fossemos amados. Lutar, chorar e gritar por esse lugar, sem descobrir que esse lugar nunca está exterior a nós e sim cá dentro, à espera que cheguemos a ele, sabendo que na altura isso parece impossível. Tudo parece impossível, lutar contra o que sentimos, contra aquilo que nos fazem sentir, com aquilo que queremos. Só queremos amar, ser amados, ser aceites, mas algo parece estar longe, algo parece estar partido, algo parece não estar bem, mesmo quando aparentemente temos tudo que desejámos, uma forma de aprendermos que aquilo que desejamos raramente é o que realmente queremos.
E tudo isso é maravilhoso. Maravilhoso tentar descobrir o nosso papel como jovens, o nosso papel como contribuintes para a sociedade, descobrir uma arte, descobrir um ofício, descobrir uma forma de ganharmos dinheiro e sermos felizes, tentando ignorar o facto de que as duas raramente são compatíveis, não por impossibilidade desta sociedade limitada, mas principalmente porque não foi isso nos ensinaram. O que nos ensinaram foi que a vida é difícil e que não devemos sonhar, não devemos criar, não devemos voar, porque os sonhos foram feitos para serem esmagados por outros, não devemos criar porque as nossas criações não têm valor fora de nós e não devemos voar porque fomos feitos para estar aprisionados à terra, com grilhões que colocamos nos nossos pés porque todos fazem o mesmo. E isso é maravilhoso, porque mesmo aprisionados, vemos o mundo, de diversas formas, de diversas maneiras. Vemos o mundo como queremos, como os outros querem que o vejamos. Vemos o mundo como a sociedade diz que é suposto este ser visto, vemos como a forma que dizem que deve ser visto para que sejamos aceites. Talvez por muito tempo, talvez por pouco, mas sermos aceites. Vemos e vamos mudando o que vamos vendo consoante aquilo que precisamos para ficarmos confortavelmente iludidos.
Maravilhoso é olharmos para trás e vermos todos os trabalhos que tivemos, tudo aquilo que fizemos e julgávamos que não fossemos capazes de fazer. Tudo aquilo que julgávamos ser incapazes de atravessar, todas as crises, todas as rejeições, todos os falhanços, todas as relações terminadas, todas as relações começadas, todas as mentiras, todas as traições, todas as imperfeições, mas principalmente, tudo aquilo que apontámos o dedo, a nós, aos outros, aqueles que considerámos culpados. É maravilhoso olhar para trás e vermos que tudo aconteceu como deveria ter acontecido, olhar para trás e aceitar que foi o melhor que podia ter acontecido. Ficar em paz, estar em paz. Ser paz. Com o que somos e com o que fomos, aceitar a ligação perfeita entre os dois e aceitar que aquilo que vemos hoje é diferente do que sentimos ontem, mas que o que temos hoje é tudo o que precisamos para continuar.
Parar. O mundo não pára mas neste processo reparamos que estamos longe do mundo, que estamos fora dele. Olhamos para a roda vazia, que continua a girar sem estejamos lá e percebemos a falácia de tudo. Não temos que andar com medo de sermos atropelados, não temos que andar por sermos obrigados, como se o mundo fosse acabar. O mundo continua a rodar, independentemente se nós estamos presos na roda ou não. Tudo continua, tal como era com a nossa presença, tal como é com a nossa ausência. Sabendo disto, subimos à roda uma vez mais. Uma última vez. E tudo é diferente, tudo sabe diferente. Renascemos através do olhar diferente que temos das coisas. A compreensão que temos do mundo faz com que encaremos tudo de uma outra forma, que o passado seja visto como uma forma de aprendizagem, sempre presente, sem apego, sem procurar por gratificação na dor ou na alegria de dias que já não existem. Ao abrir pelos olhos para este novo maravilhoso mundo sabemos que a qualquer momento podemos sair da roda, porque no final, a escolha é nossa.
O novo maravilhoso mundo é aquele que temos aos nossos pés, quando abandonamos tudo o que não nos serve e nos atrevemos a sonhar e a ser o que realmente somos.