Saturday, July 30, 2005

Release me

Ao fazer aquela retrospectiva apercebi-me de algo estranho. Nos últimos, quase 11 anos, optei por não pensar em ti, pelo menos não da maneira que seria normal pensar. Acho que fiz isso para me proteger, para custar menos. Foi quando morreste que eu pensei que eu não te iria enterrar num caixão, não iria ao teu funeral, porque tu simplesmente não tinhas morrido. Fazias parte de mim agora, eras aquilo que eu tinha sido quando eras vivo. Um prolongamento do teu ser. Hoje sei que foi uma maneira ardilosa de fugir á dor de não estares aqui mais. Na altura reagi de maneira fria á tua morte mas eu simplesmente nao comprendia porque é que estavam assim, tu não tinhas morrido. Tinha só 15 anos e no ano anterior o avó João tinha morrido mas não era a mesma coisa. Sei que os meus pais e a avó não me compreenderam, pensaram que me tinha sido indiferente tu teres morrido, mas eles não perceberam que tu não morreste. Não para mim...Foi como se tivesses ido de viagem, uma viagem que durou mais de 10 anos e que hoje voltaste. Tinha saudades tuas...Todos temos, apenas eles encararam isso de frente e hoje em dia já não lhes provoca dor, ou pelo menos não tanta... O meu pai, depois de uma semana de morreres, quando a poeira assentou, sentou-se no sofá e chorou, chamou por ti. Gritou "O meu pai, o meu pai morreu!". Sei que vocês discutiram muito mas ele gostava de ti e sei que sente a tua falta, todos sentimos...embora eu ainda não tenha chorado por ti desde que morreste.
Tenho saudades de jogar ás cartas contigo, embora fosse algo que a avó não gostasse; de me chamares de pavão quando eu fazia algo de estupidamente idiota e isso aconteceu mais frequentemente do que eu desejava; de me dizeres que iria vender todos os meus livros de banda desenhada quando crescesse; que quando vias algum efeito especial de algum filme de dizeres com desprezo que era tudo aldrabice. Nem acreditas as saudades que tenho tuas...
Tinha saudades de falar contigo como não falei antes. Tanta coisa que te tenho para contar. 2 anos depois de morreres acabei a escola, tirei cursos tive em alguns empregos e agora estou a trabalhar ao pé da minha mãe. A mana teve um filho do Luís, uma verdadeira peste, acho que ias gostar dele, é parecido com ela quando nova. A avó já morreu, o ano passado...carreguei algum peso pela morte dela ás costas, mas agora vejo ou pelo menos fizeram-me ver que era mais um peso inútil que carregava.
Desde que morreste, num dos momentos mais difíceis da minha vida, onde foi um climax de muitas situações...incómodas que guardei muita coisa dentro de mim e refugiei-me do mundo, mas duas semanas atrás ajudaram-me a superar isso. Uma das pessoas mais importantes para mim deu-me a ajuda necessária para começar, o trabalho restante tem que ser meu. Gostava que a conhecesses, avô sei que irias gostar dela...e eu aprendi tanto com ela. Por causa desse dia, que foi marcante para mim, é que regressaste. Por causa dela. E é engraçado como eu agora eu vi as semelhanças entre duas coisas que não podiam ser mais distantes. E daí talvez não sejam tão distantes como isso... Lembrei-me que dessa sessão de exorcismo esqueci-me de mencionar uma coisa que me arrependo de ter feito a ti, que precisava de ouvir alguém a perdoar-me por isso. Mas acho que só eu é que me posso perdoar a mim mesmo. Foi o que aprendi nesse dia e tenho vindo a tentar cumprir desde então. E o facto de me ter lembrado disso que faltou confessar, trouxe-te de volta outra vez. Isso fez me aperceber que o que tenho mais dificuldade é em aceitar a perda das pessoas que amo. De alguma maneira tento fazer com que isso seja evitado, não aceito, opto por fazer de conta que as coisas não aconteceram, que as pessoas não existiram. Mas se elas são tão importantes para mim, porque é que eu faço isso? Para continuar, para tentar continuar. Hoje perguntei a uma amiga minha como se consegue amar alguém que perdemos sem dor? Agora sei que é impossível, por muito tempo que passe esse amor, se for verdadeiro não morre, a dor é que passa. Eu não me arrependo de ter tomado esta decisão, não estava a aguentar a dor. Mas no teu caso e perante a inevitibilidade da... "ausência" nem pensei, simplesmente aconteceu. E 10 anos passaram e tu voltaste. Se tu voltaste...
Sei que no final da tua vida fizeste as pazes contigo mesmo, te perdoaste do que fizeste. Eu não quero chegar a esse extremo, eu não vou chegar a esse extremo. Não quero morrer para ficar em paz comigo mesmo. A todos os que magoei por estar ou não estar em mim, por agir com o coração em vez de a cabeça, por agir com a cabeça em vez do coração, por dizer aquilo que não sentia a quente, por nao dizer aquilo que sentia a frio. Peço desculpa por tudo a todos, porque eu quero me perdoar. Não sei o que vou fazer em relação ao futuro, avô, ele é imprevisível, incerto e apenas posso acertar nalgumas previsões. Mas o que vou tentar fazer em relação ao passado é que ele não me magoe tanto.
É engraçado, disse-te mais de mim depois de morto do que quando estavas vivo. Devia ser muito inconsciente...ou então nem sabia por onde começar. O que me ensinaste hoje foi que nunca é tarde demais, para nada. Não há fins definitivos e não há portas fechadas. Tu hoje voltaste para me dizer isso. Hoje soube que não tempo algum que apague aquilo que não pode morrer. Posso me enganar a mim próprio mas mais cedo ou mais tarde, volta tudo. Porquê fugir a algo que não se pode fugir, que é incansável e que está sempre á espreita? Depois de tanto tempo de ausência para que eu não enfrentasse o que temia, hoje finalmente posso me despedir de ti, hoje posso chorar a tua perda. Continuas a estar dentro de mim, mas tenho que te deixar ir. Não posso fazer de conta que não partiste. Não mais. Vou digerir tudo o que me ensinaste, sei que não me trouxeste a solução, apenas me deste mais umas ferramentas para eu próprio construir... o meu templo. Para eu continuar essa mesma construção, construção que tu forneceste os pilares. Eu sempre quiz ser perfeito, para que todos me pudessem amar, persegui incansavelmente isso apenas para dar razão a quem me fez mal ao constatar que não era perfeito, que era por causa disso que aconteceu o que aconteceu. Tu não foste perfeito...fizeste muita coisa que te arrependeste, mas toda a gente te amava e tiveste muitas dificuldades e não foste plenamente feliz. Acho que raramente se é plenamente feliz, eu provei essa felicidade mas ela não durou o que eu queria que durasse, mas devia-me mostrar satisfeito por a ter conhecido. Aprender o exemplo contigo, que apesar de não teres muito, eras feliz, por teres os filhos que tiveste, a esposa que tiveste (apesarem de estarem sempre a discutir) e de teres tido os netos que tiveste. Por seres apenas tu. E obrigado por isso. Obrigado por tudo, por ouvires este "pavão" que estava a morrer de saudades. Este pavão que te liberta, e que vai fazer aquilo que devia ter feito há 10 anos atrás, chorar a tua morte...
Ps: O futuro é incerto, não dá para fazer planos mas uma coisa te garanto que vou ser coerente com aquilo que disse, consequentemente com aquilo que sinto. Ainda não vendi as minhas bandas desenhadas...

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